segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Eleição do presidente do CNS: quais os limites da democracia participativa?

Por Francisco Júnior, Farmacêutico, Conselheiro Nacional de Saúde representando a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social.

E de repente, não mais que de repente, a eleição para a presidência do Conselho Nacional de Saúde despertou um interesse nunca antes visto na história desse país.

Antes disso, bem antes disso, há exatos oito anos atrás, o governo Lula foi a senha para o movimento social deflagrar todo um processo na perspectiva da definitiva democratização do CNS e que pudesse servir de espelho para o país. Não foi fácil! Até garantirmos a ampliação do colegiado, a extinção das intocáveis vagas cativas através de um processo eleitoral transparente com regras perfeitamente definidas, e elegermos democraticamente o seu presidente pela primeira vez na história, com mais de 70 % dos votos de seus pares, no final de 2006, muita articulação e argumentação se fizeram necessárias.

Eleito o seu presidente, retirando da alçada do Ministro de Estado a prerrogativa do exercício nato do cargo, havia um primeiro e significativo desafio a superar, a desconfiança no esvaziamento político do mais importante colegiado de “controle social” no país. Questionavam então o que seria do CNS sem um presidente “de peso político”. Não atentavam para o fato de que em toda a sua história, ter o chefe do executivo na sua direção maior, não havia significado até aquele momento, avanços que pudessem ser reconhecidos como alvissareiros. A ausência constante nas reuniões, a não homologação das resoluções e o sistemático descumprimento das decisões do Pleno, sempre foram a tônica e a rotina.

E veio 2007 com a realização da 13ª Conferência Nacional de Saúde, a maior das últimas Conferências realizadas, que teve começo, meio e fim e que até hoje é questionada por alguns, porque teve a petulância de se posicionar de forma contundente contra a proposta de fundação de direito privado, pautada de forma absolutamente equivocada na forma e no conteúdo, pelo governo. E o seu presidente foi reeleito democraticamente, sem concorrente.

E veio 2008 com o Conselho Nacional de Saúde realizando dois grandes seminários nacionais sobre gestão do SUS, com a participação de todos os atores relacionados com o tema e oportunizando a exposição de todas as principais experiências de gestão praticadas no país. E o seu presidente foi reeleito democraticamente, sem concorrente.

E veio 2009 com o 1º Seminário Nacional para o desenvolvimento de sistemas universais de seguridade social e a realização da 1ª Caravana Nacional em Defesa do SUS. Indo a quase todos os estados da Federação, ouvindo os problemas de cada um e de cada região, dialogando com todos os segmentos que têm relação com o SUS, o CNS aprovou e pactuou com os gestores dos três níveis de governo a sua Agenda Política com propostas estruturantes, e que dão respostas claras e inquestionáveis aos nossos problemas de gestão dos serviços e do trabalho, financiamento, modelo de atenção, estruturação da rede e relação entre o público e o privado. E o seu presidente foi reeleito, democraticamente.

E veio 2010 com a realização do 1º Seminário Nacional de Atenção Básica, o 1º Seminário Nacional sobre a relação entre o público e o privado e a 1ª Conferência Mundial para o desenvolvimento de sistemas universais de seguridade social. Debates aprofundados e democráticos, com a aprovação de propostas para a atenção básica, para o fortalecimento do setor público e para o resgate da inserção do SUS no conceito da Seguridade Social e na intersetorialidade de forma ampla, foram encaminhados. Durante todo esse período, Plenárias anuais de Conselhos de Saúde debateram todas essas questões, e reuniões concorridas, participativas, democráticas e transparentes, transmitidas em tempo real, pautavam as políticas e os mais variados temas que dizem respeito ao SUS como um todo.

Todos esses movimentos realizados pelo CNS, inéditos na forma e no conteúdo, com absoluto apoio em todas as instâncias do “controle social” no país, foram vistos por alguns, com enorme desconfiança. Pelo governo, por serem absolutamente contra hegemônicos e ferir interesses poderosíssimos. Por outros, por ser a primeira vez na história que o CNS chamava para si a responsabilidade de assumir o protagonismo do debate dos grandes temas do SUS, até então privilégio e prerrogativa de alguns poucos “iluminados”. E isso nos custou caro. Tivemos enfrentamentos políticos importantes.

As direções das entidades médicas, que reivindicavam a permanência das suas vagas cativas, se recusaram a participar do processo eleitoral de 2009, mesmo com o acordo político firmado publicamente, que lhes assegurava uma vaga de titular e duas de suplentes, como forma de garantir a participação das três principais entidades nacionais como era até então a regra. Optaram por ficar de fora do CNS.

Diante dos debates que fazíamos sobre estados que privatizavam serviços através de Organizações Sociais e OSCIP, e da decisão de propor ao Ministério da Saúde o cumprimento da punição prevista na lei 8080, houve uma crise política com os gestores, que foi solucionada através do diálogo e da posição firme do Governo Federal (Palácio do Planalto) em defesa do controle social. Sobre as OS, é bom acrescentar a informação de que também fizemos vários movimentos juntos ao Ministério da Saúde e ao STF na perspectiva do acatamento da ADI que questiona a legalidade das ditas cujas, e participamos de vários fóruns estaduais que lutam política e juridicamente contra as mesmas.

De outro lado, internamente, como já escrevi em outros momentos, disputas despolitizadas pautadas em interesses particularizados sem levar em conta a conjuntura mais geral, a cada ano criava e gerava atritos mesmo com a recondução por aclamação do seu presidente em duas oportunidades, 2007 e 2008, respectivamente. Sobre isso, para que não exista dúvida, nunca foi firmado QUALQUER acordo sobre rodízio anual dos segmentos na presidência do Conselho Nacional de Saúde. NUNCA!

A verdade é que o exercício da democracia participativa não é algo tão simples assim, e bem sabemos disso. Exatamente em função de estar cumprindo com correção o seu papel, e nisso não vai qualquer desconsideração com as falhas, erros e insuficiências naturalmente cometidas, foi deflagrada uma campanha das mais desqualificadas, das mais sórdidas contra o Conselho Nacional de Saúde, particularmente contra o seu presidente “autoritário”, “personalista”, “prepotente”. Quanta desinformação! Ou terá sido pura má fé, mesmo?

Tentaram identificar o CNS como um “aparelho sindical” a serviço das corporações e dos seus malévolos vícios. De um colegiado respeitado em todo o país, referência para Conselhos Estaduais e Municipais, aplaudido em todos os estados, pela autonomia, independência e capacidade de argumentação e proposição, passou a ser vítima da acusação de ser um colegiado acrítico, esvaziado e desrespeitado, mesmo com todas as reuniões acontecendo com quorum pleno e com a quase totalidade das suas resoluções homologadas.

O forte discurso da necessidade de “renovação” ficou totalmente esvaziado com a manutenção de praticamente todos os membros da Mesa Diretora, exceção de um usuário.

Numa sociedade conservadora, reacionária e autoritária como a nossa, um bom termômetro para avaliar a atuação de qualquer ator que se disponha a enfrentar a hegemonia dominante, é a rejeição e o incômodo que ele provoca ou não, no status quo. Aprendi, portanto, que Conselho de Saúde que não faz barulho, não está cumprindo bem o seu papel. Conselho atuante, por conseguinte, e a experiência comprova isso, é aquele que incomoda, que tem a coragem de dizer não quando tem que dizer não, sem ter vergonha de dizer sim quando é o caso de dizer sim. Exatamente o que tem feito o CNS nos últimos quatro anos.

Como o Conselho Nacional de Saúde apesar da incrível desinformação de alguns, tornou-se respeitado em todo o país, é referência inclusive junto aos órgãos de comunicação e tem incomodado profundamente o status quo, não temos então porque ter dúvidas sobre o acerto da sua atuação nos últimos anos. Isso não significa, volto a reiterar, deixar de reconhecer os erros e equívocos eventualmente cometidos, como inclusive já escrevi em outros espaços.

Para nós não foi, portanto, sem uma motivação maior que o Governo decidiu retomar para o seu controle, a direção política do Conselho. Um equívoco dos mais graves sob o ponto de vista político, uma mácula e um péssimo exemplo praticado pelo governo num processo até então rico, de fortalecimento da autonomia e independência dos Conselhos de Saúde que estava em curso e que produzia seus frutos pelo país afora em estados e municípios.

Lamentamos profundamente ter perdido a oportunidade de eleger dessa vez um usuário, para a presidência do CNS, uma decisão tomada por nós já em novembro do ano passado (outra informação importante) e publicizada em janeiro, que pudesse continuar o aprofundamento desse processo de radicalização democrática. É deprimente nós lermos textos que afirmam que, agora sim, o Ministro vai “prestigiar” e respeitar o Conselho e suas deliberações, como se isso devesse estar vinculado ao exercício do cargo. Entendo que participar das reuniões, contribuir nos debates e respeitar as decisões do Conselho de Saúde, são obrigações, deveres do gestor e não uma concessão que pior ainda, fique na dependência dele exercer ou não o cargo de presidente do colegiado.

No jogo democrático devemos ter maturidade e estar sempre preparados para enfrentar aquilo que temos absoluta certeza, não é o melhor nem para a sociedade nem para o SUS. Faz parte do jogo. É a dialética na sua essência. Tenho a convicção de que teremos tempos duríssimos pela frente. Tenho clareza absoluta de que a conjuntura nos é flagrantemente desfavorável. Os revisionistas do SUS estão no e com o poder. Nada, no entanto, que nos faça desestimular. A militância do SUS já deu provas de sobras, da sua capacidade de arregimentação e articulação. O SUS e os seus princípios nunca estiveram tão atuais. Virão as conferências. Vamos ao debate. Como tenho afirmado reiteradamente: engana-se quem pensa que a história acabou. Ela está apenas começando.

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