Proposta garante a nova empresa que atue no mercado financeiro. Críticos afirmam que o modelo prejudica o ensino e o atendimento à população, mas emendas tentam suavizar o projeto.
São apenas duas palavrinhas: ‘sociedade anônima’. Entretanto, a pequena expressão pode resultar em grandes mudanças para os hospitais universitários. Em tramitação novamente no congresso, uma proposta pretende criar a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A (EBSERH), uma empresa pública sob a forma de sociedade anônima, com personalidade jurídica de direito privado e patrimônio próprio, vinculada ao Ministério de Educação (MEC). O PL 1749/2011, que cria a empresa, garante que a EBSERH terá por finalidade a prestação de serviços gratuitos de assistência à comunidade, bem como de apoio ao ensino, pesquisa e extensão às instituições públicas federais de ensino. No entanto, de acordo com a lei 6.404/1976, ser uma sociedade anônima significa que o capital da empresa será dividido em ações, o que, por conseguinte, determina a possibilidade de negociação da empresa nas bolsas de valores.
Para professores e trabalhadores das universidades públicas, isso significa risco à autonomia universitária, possibilidade de piora no atendimento à população com privatização de leitos e poucas garantias para os trabalhadores. Esta é a opinião, por exemplo, do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e da Federação de Sindicatos de Trabalhadores em Educação das Universidades Brasileiras (Fasubra). Por outro lado, o governo argumenta que essa é a melhor forma de resolver o problema dos milhares de trabalhadores com vínculos precários que atuam hoje nos hospitais. O PL recebeu nove emendas, que começam a ser debatidas na Câmara. Algumas delas tentam restringir a atuação da empresa.
De acordo com a justificativa do governo apresentada ao projeto, redigida pelos ministros Miriam Belchior (Planejamento) e Fernando Haddad (Educação), a empresa terá capital integralmente de propriedade da União. Entretanto, para a professora Sônia Lúcio, do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), pelo fato de ser uma sociedade anônima, a empresa pode começar pública, mas terminar privatizada. “Isso significa que essa empresa se constitui com financiamento público, mas que, com este financiamento, ela pode transacionar ações no mercado que serão compradas por quem puder comprar e gerir. Ou seja: num primeiro momento ela se constitui com investimento público e, portanto, como empresa pública, mas se lhe é assegurado transacionar ações no mercado, poderá ter suas ações compradas, por exemplo, por seguradoras privadas que ditarão as prioridades da assistência e de pesquisa. Assim, todo o trabalho dos hospitais universitários será subordinado aos interesses privados e do lucro”, alerta.
A professora aponta com uma consequencia disso a piora no atendimento à população. “A população sentirá os efeitos dessa mudança à medida que começar a ser atendida pela segunda porta dos hospitais e quando for possível. Isso é o que tem nos preocupado profundamente, porque a população que é majoritariamente hoje atendida pelo SUS nos hospitais universitários, será atendida apenas quando der”, afirma. Sônia lembra que a dupla porta de entrada, ou seja, o estabelecimento de dois tipos de atendimento diferenciados nos hospitais universitários – um para o usuário que paga pelo serviço e outro para os usuários do SUS, já existe. Entretanto, a situação se agrava com a empresa. “Com a criação da via da lei, se essa dupla porta de entrada já acontece hoje de uma forma informal, isso passa a ser assegurado juridicamente”, acrescenta.
A professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Sara Granemann, também considera o formato grave. Sara explica que a EBSERH pode passar a atuar no mesmo formato de uma empresa como a Petrobras. “A Petrobras, para o público em geral, é um sucesso, é uma empresa lucrativa. Mas trata-se de uma lucratividade que não é inteiramente do Estado. Essa situação numa área como a saúde pode ser uma catástrofe. Essa medida é uma enorme oportunidade de expansão dos lucros privados. E isso coloca em risco os hospitais universitários que são a parte mais desenvolvida do conjunto da saúde pública, em termos de inteligência da área da saúde pública, de pesquisas, de qualificação de profissionais. A Petrobras, mesmo sendo uma empresa pública, tem problemas sérios de precarização de trabalhadores”, detalha.
Para a Federação de Sindicatos de Trabalhadores em Educação nas Universidades Brasileiras (Fasubra), a proposta prejudica ainda mais os hospitais universitários e os trabalhadores. O coordenador de políticas sociais e de gênero da Fasubra, Antônio Donizetti da Silva, ressalta que mesmo que o governo fique com a maior parte das ações da empresa, isso não assegura a autonomia da gestão dos hospitais. “Mesmo que o governo argumente que 51% do capital aberto será dele, portanto a maioria das ações, e o restante é que ficaria nas mãos dos acionistas, é muito complicado. Porque se 49% do capital da empresa for privado, sabemos que esse setor terá peso para ditar as regras. Nós sabemos inclusive que essa participação do Estado com 51% coloca a responsabilidade por todo o investimento e todas as dívidas nas mãos do estado. Então, não é verdade que haverá controle”, opina.
Emendas
No primeiro semestre deste ano, o governo já havia apresentado a mesma proposta por meio de uma medida provisória, a MP 520, que chegou a ser aprovada na Câmara dos Deputados. Mas como a MP não foi apreciada no tempo necessário, ela perdeu a validade quando tramitava no Senado. Agora, o PL 1749/2011 está tramitando em regime de urgência, o que significa que, caso não seja apreciado, passa a trancar a pauta de votações da Casa a partir do dia 1º de setembro. A deputada federal Alice Portugal (PCdoB/BA), uma das poucas vozes críticas ao projeto no Congresso, foi autora de três das emendas ao PL. As emendas da deputada tentam diminuir a interferência da empresa nos hospitais universitários. Alice propõe a modificação da finalidade da empresa, que em vez de prestar diretamente os serviços de saúde à população, passaria apenas a apoiar as instituições federais na prestação desses serviços. “Essa emenda tem a finalidade de reduzir o dano que esse projeto de lei, antes medida provisória, causa à estrutura pública dos hospitais universitários brasileiros. Os hospitais universitários são o maior celeiro de quadros na área da saúde de todo o país. Mais de 90% das pesquisas nessa área são ou da Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] ou das estruturas de pesquisa dos hospitais universitários. A proposta da empresa é estabelecer um intermediário para a administração do recurso público, mas as universidades têm qualificação nas suas escolas de saúde, de administração hospitalar em todo os país, têm condições suficientes para colocar técnicos para a administração destes hospitais. A emenda vem, então, no sentido da redução de danos porque não temos correlação de forças para derrotar a matéria”, explica.
Da forma proposta pela deputada, apresentada também em outra emenda de mesma autoria que exclui da atuação da EBSERH a administração dos hospitais, a empresa passará a gerir apenas os contratos dos trabalhadores e também a cuidar, por exemplo, da compra de insumos hospitalares. “Dessa forma, como uma empresa de apoio, nós poderíamos resolver o problema dos terceirizados, que estão sob a mira do Tribunal de Contas da União para uma possível demissão. Os hospitais hoje precisam dessa mão de obra porque não há possibilidade de realização de concurso de tamanho suficiente para suprir as necessidades dos hospitais e essa empresa serviria também para mediar ações de compras de insumos, facilitando a administração, papel que hoje é realizado de maneira ilegal pelas fundações. Então, haveria esse apoio administrativo, mas a administração continuaria a ser pública e ligada à instituição universitária”, assegura. Alice Portugal entende, entretanto, que mesmo com a emenda aceita, permanece o dano à estrutura pública. “Quando a proposta foi apresentada na medida provisória, eu fui quase voz única, acabamos mobilizando na Câmara um total de cento e poucos deputados, mas perdemos. Então, é apenas uma atitude de redução de dano porque, lamentavelmente, o governo que tem trazido tantos ganhos, nesse momento oferece um projeto que descarta os hospitais universitários. O ideal seria rejeitar totalmente a matéria”, diz. A deputada acrescenta que os hospitais têm um foco que é ao mesmo tempo assistencial e educacional, situação que será “inevitavelmente modificada” com a Empresa.
Solução para precarização dos trabalhadores?
De acordo com dados do MEC, 26.556 mil funcionários dos 45 hospitais universitários federais são terceirizados com contratos diversos, de um total de mais de 70 mil trabalhadores dessas unidades. Muitos contratos são irregulares e por isso, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou em 2006 que o governo teria quatro anos para resolver o problema. A solução encontrada foi a criação da Empresa, já no final do prazo dado pelo TCU. “O formato de empresa pública possibilitará a contratação, via concurso, de profissionais sob regime celetista e o estabelecimento de um regime de remuneração e de gestão de pessoal compatível com a realidade do setor. Esta é, inclusive, uma componente fundamental do projeto para permitir a gestão com a autonomia e flexibilidade necessárias à prestação de serviços hospitalares”, assegura o governo federal na justificativa do projeto encaminhada ao Congresso.
Sônia Lucio não acredita que a empresa resolva o problema. “De acordo com a saída apontada, os trabalhadores continuam sem o vínculo empregatício que lhes garanta estabilidade no emprego e, portanto, sem a possibilidade de garantir a continuidade de um projeto de trabalho de longa duração. Nós defendemos a estabilidade no serviço público com base no compromisso do atendimento de qualidade à população usuária. Um plano de trabalho voltado para os interesses da imensa maioria da população brasileira não pode estar atrelado aos interesses de governos ou do empresariado, ao contrário, deve estar vinculado a uma perspectiva pública e universalizante e, portanto, garantido pelo Estado. Por isso, do nosso ponto de vista, o que pode favorecer esta proposta de universidade e de hospital universitário é o aumento do financiamento, a ampliação de vagas e a realização de concurso público”, reforça.
A opinião é compartilhada por Sara Granemann, que acrescenta que a medida também resulta em uma tentativa de desorganização dos trabalhadores. “A medida organiza o problema e institucionaliza a forma de precarização via terceirizações. Isso é, na verdade, um ataque à força de trabalho, que continuará precarizada e mais contida nas lutas, justamente por conta da instabilidade. Mas aí podem dizer: ‘Os hospitais privados já trabalham assim’. Mas os hospitais privados não podem ser a nossa referência. É só perguntar para os trabalhadores como é o trabalho nos hospitais privados”, diz.
O PL garante também que a nova empresa poderá criar entidade fechada de previdência privada para os trabalhadores, ou então aderir a entidades de previdência já existentes, a exemplo dos fundos de pensão Petros, dos trabalhadores da Petrobras ou o Previ, dos funcionários do Banco do Brasil. Para Sara, este é mais um dos problemas da proposta. “A previdência complementar transfere o risco das aposentadorias para os trabalhadores. É importante lembrar que a previdência privada investe em ações em bolsas de valores a partir da renúncia dos trabalhadores de parte de seu próprio salário. E os planos de previdência vão comprar ações das empresas mais lucrativas. Sabemos que as empresas que dão mais lucro são as que mais exploram os trabalhadores. Então, é uma situação na qual os recursos dos trabalhadores estão potencializando a exploração de outros trabalhadores”, define.
Soluções
Tanto no projeto de lei, quanto na justificativa enviada ao Congresso, o governo insiste que a Empresa não ferirá a autonomia universitária, uma vez que a universidade é que decidirá se fará ou não o contrato com a EBSERH. Entretanto, para a deputada Alice Portugal, com a aprovação do projeto, o poder de decisão da universidade sobre os rumos dos hospitais universitários ficará seriamente comprometido. “A autonomia universitária está ferida de morte, porque os hospitais deixarão de ter vinculação com a vida universitária, sua direção será feita por essa empresa, o seu conselho diretivo passa a ser um conselho que não tem os vínculos com os colegiados dos cursos. Temos que entender que a universidade só terá poder de mando nos hospitais universitários se eles continuarem sendo órgãos dessas instituições, com representação nos seus conselhos superiores, com seus dirigentes eleitos por sua comunidade, pela via da democracia universitária. Do contrário, estaremos de fato entregando o orçamento da estrutura pública para o seguimento privado administrá-la e tirar lucro da maneira que quiser”, aponta.
Alice sustenta que a medida, na realidade, é uma proposta de privatização. A deputada faz um chamado a todos os trabalhadores da saúde a unirem-se e tentarem barrar a proposta. “Meu apelo a todos os profissionais de saúde é para que se mobilizem para influenciar os deputados de seus estados a votarem contra essa matéria, para que os hospitais continuem sob a direção das universidades federais brasileiras”.
Sara Granemann explica como, na sua opinião, os últimos governos têm agido para colocar em prática propostas de privatização. “Não é uma privatização explícita. Não é a venda direta na bolsa de valores, mas é colocado em prática um mecanismo de privatização mais sofisticado e o mais utilizado agora nessa era dos monopólios. É um mecanismo mais difícil de compreender e é o mesmo das Organizações Sociais, Oscips, Fundações Estatais de Direito Privado, de forma a ocultar a essência da privatização. Só que a empresa é ainda mais grave”, comenta.
Para a professora, a única solução aceitável para resolver o problema dos hospitais universitários é a realização de concursos públicos. “Do modo como está se encaminhando por essa empresa, com as políticas sociais tendo que fazer o superávit fiscal, claramente está se definindo a natureza do Estado brasileiro. É o fundo público a serviço do capital e não das classes trabalhadoras de todo o país. A natureza de classe do Estado em cada ato desse está clareada. É o Estado máximo para o capital e mínimo para o trabalho. A única solução aceitável por nós trabalhadores é o concurso público para o provimento dessas vagas, que é absolutamente contrário ao que o governo está fazendo”, reforça.
O Ministério da Educação foi procurado pela EPSJV/Fiocruz para comentar sobre o PL e as emendas propostas pela deputada Alice Portugal, entretanto, a assessoria de imprensa do órgão respondeu que no momento o Ministério não iria se pronunciar.
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*Retirado da EPSJV