Nos últimos meses, vem ganhando vulto no Brasil uma “nova” modalidade de
combate ao uso de drogas ilícitas. Inspirada no princípio da “proteção
integral”, disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, a medida
consiste em recolher das ruas e internar compulsoriamente crianças e
ado lescentes usuários de drogas, em especial os dependentes de crack.
Temos acompanhado o processo e suas repercussões com bastante preocupação,
dada, principalmente, a compreensão distorcida do conceito de “proteção
integral”. É ponto pacífico a importância de uma rede de atenção à saúde
implicada com a temática do abuso de drogas e suas consequências, entretanto
não nos parece apropriada a ideia da internação compulsória como política
pública de saúde mental e assistência social.
Por que razões estas crianças e adolescentes chegaram ao ponto de viver nas
ruas? Por que se tornaram dependentes químicos? Foram acolhidos por quais
outras políticas públicas? Onde estavam o Estado e o direito à proteção
integral destes jovens ao longo de todo esse tempo? Parece-nos que tais
questionamentos têm sido escantead os em benefício de uma racionalidade
pragmática pouco atenta à dignidade dos humanos abordados, os quais têm sido
tratados muito mais como dejetos do que como sujeitos de direitos.
A novidade terapêutica apresenta triste verossimilhança com dois momentos
históricos preocupantes: o primeiro deles refere-se ao tratamento dispensado
à loucura nos séculos XVII e XVIII, quando o surgimento dos asilos e
manicômios cumpriu papel fundamental na reclusão de loucos, pobres,
criminosos e todos os que não se adequassem às normas sociais. Por outro
lado, tamanha limpeza social dos indesejáveis também pôde ser observada no
início do século XX no Brasil, com a emergência da medicina higienista e
suas interferências nos hábitos, valores, moradia e reiterada
desqualificação do saber popular. Um dos maiores exemplos do que estamos
analisando foi a reforma urbanística do prefeito carioca Pereira Passos,
famoso nacionalmente pela derrubada de cortiços, demolição de casas,
desodorização das ruas e pela maquiagem urbana operada na capital fluminense
em nome da modernização e saneamento do espaço público.
O breve resgate histórico aponta-nos para a reedição de medidas excludentes
e violentas em nome da proteção e cuidados aos ditos vulneráveis. Tais
procedimentos configuram-se, ainda, como grave retrocesso frente à reforma
psiquiátrica em andamento no Brasil. Ao arrepio da Lei 10216/2001, a prática
banalizada da internação compulsória é um acinte à luta antimanicomial e a
todos os esforços que os profissionais da saúde e movimentos sociais têm
empenhado rumo a tratamentos mais dignos e compatíveis com a cidadania plena
dos usuários dos serviços de saúde mental. Além do explicitado, não há
evidências científicas de que o tratamento involuntário apresente resultados
mais satisfatórios que outras modalidades de intervenção, evidenciando, ao
contrário disso, o lastimável indicador de 95% de recaídas, conforme
assinala o Prof. Dr. Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de
Orientação e Assistência a Dependentes da
Universidade Federal de São Paulo.
Recolher pessoas contra sua vontade não significa acolhê-las, significa
violentá-las em sua cidadania, dignidade e direito constitucional de ir e
vir. A política de higienização urbana, longe de ser configurada como real
estratégia protetiva, caracteriza-se como um escárnio àqueles que, da
condição de historicamente abandonados pelo Estado, passam agora a ser
perseguidos e encarcerados, sob o argumento da proteção integral.
Por fim, renovamos nossa aposta nos serviços substitutivos ao modelo
manicomial, historicamente caracterizado pela truculência, segregação e
violação cotidiana aos direitos humanos. Afirmamos, ainda, a importância das
experiências de redução de danos, dos Centros de Atenção Psicossocial, dos
Centros de Referência em Assistência Social e da Estratégia de Saúde da
Família. Mais do que um conjunto de nomes, representam dispositivos de
acolhimento humanizados, eficazes e sintonizados com o respeito e promoção
da dignidade humana.
--
Prof. Nelson Gomes Jr
João Pessoa, PB, Brazil
Nascido no Rio de Janeiro, graduou-se em Psicologia pela UFF em 2000. Em
2003 concluiu o Mestrado em Psicologia pela UFES. Atuou como docente e
coordenador de Cursos de Psicologia em Instituições Privadas de Ensino até
2009. Atualmente é docente e Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal da Paraíba, atuando nas interfaces de Psicologia
Jurídica e Direitos Humanos.
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