O documento foi entregue ao Ministério Público Estadual no dia 4 de maio de 2009.
Do: Fórum Permanente contra as Fundações Estatais de Direito Privado e em Defesa do Serviço Público e dos Direitos Sociais
Para: Promotoria da Saúde do Ministério Público Estadual
Micheline Tenório
Maceió, 04 de maio de 2009
Diante do anúncio, por parte do Governo de Alagoas, através da Secretária de Estado da Saúde, do projeto de implantação das Organizações Sociais de Saúde (OSS’s) - já discutido com uma comissão designada pela Assembléia Legislativa, formada pelos deputados Judson Cabral (PT), Alberto Sexta-feira (PSB) e Carlos Cavalcante (PTdoB), conforme matéria publicada em 09/04/2009, pela Sesau/Ascom - o Fórum Permanente contra as Fundações Estatais de Direito Privado e em Defesa do Serviço Público e dos Direitos Sociais vem ao Ministério Público Estadual, expressar sua insatisfação com tal proposta, bem como solicitar que sejam encaminhadas as medidas cabíveis no sentido de impedir a implantação dessas Organizações nas unidades de saúde do estado de Alagoas a partir das duas ordens de Considerações e seus respectivos argumentos legais a seguir:
Considerando que a implantação das Organizações Sociais de Saúde (OSS’s) fere ao arcabouço legal do Sistema Único de Saúde (SUS):
· O art. 199, § 1º da CF, estabelece que “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”
De acordo com Maria Sylvia Zanella di Pietro (2002)[1] “É importante realçar que a Constituição, no dispositivo citado (art. 199, § 1º), permite a participação de instituições privadas “de forma complementar”, o que afasta a possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado serviço. Não pode, por exemplo, o Poder Público transferir a uma instituição privada toda a administração e execução das atividades de saúde prestadas por um hospital público ou por um centro de saúde; o que pode o Poder Público é contratar instituições privadas para prestar atividade-meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, como os inerentes aos hemocentros, realização de exames médicos, consultas, etc.; nesses casos, estará transferindo apenas a execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde, mas não sua gestão operacional”. Assim, “deve ser afastada a concessão de serviço público”, apenas o que é permitido legalmente são os “contratos de serviços regulamentados pela Lei n.º 8.666, de 21.6.93, com alterações introduzidas pela Lei n.º 8.883, de 8.6.94. Pelo art. 6º, inc. II, dessa lei, considera-se serviço ‘toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse da Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (Pietro, 2002).
- O art. 24 da Lei nº 8080/90 estabelece que “quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde – SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.”
O Fórum argumenta baseado na citada autora que a “Lei n.º 8080, de 19.9.90, que disciplina o Sistema Único de Saúde, prevê, nos arts. 24 a 26, a participação complementar, só admitindo-a quando as disponibilidades do SUS “forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área”, hipótese em que a participação complementar “ser formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público” (entenda-se, especialmente, a Lei n° 8.666, pertinente a licitações e contratos). Isto não significa que o Poder Público vai abrir mão da prestação do serviço que lhe incumbe para transferi-la a terceiros; ou que estes venham a administrar uma entidade pública prestadora do serviço de saúde; significa que a instituição privada, em suas próprias instalações e com seus próprios recursos humanos e materiais, vai complementar as ações e serviços de saúde, mediante contrato ou convênio” (Pietro, 2002, 123).
Observa-se que é inconstitucional e ilegal as formas de terceirização dos serviços de saúde propostas, já que a Constituição Federal, em seu art. 196, estabelece que a saúde seja “direito de todos e dever do Estado”, o que impede o Estado de desresponsabilizar-se da prestação destes serviços, restando ao setor privado o papel apenas de complementaridade, na forma da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993.
De acordo com a jurista Lenir Santos, procuradora da Unicamp (aposentada) e diretoria do Instituto de Direito Aplicado à Saúde – Idisa, “se extinguir serviço de saúde com o único objetivo de transferi-lo para o particular, haverá burla à Constituição e à Lei 8.080/90 (art. 24); se transferir o próprio serviço público para terceiro o gerenciar, estará abrindo mão de sua função pública, que é a de prestação de serviços de saúde. Como bem assevera Celso Antonio Bandeira de Mello, ao comentar a saúde e as OSs, que sendo a saúde um dever do Estado, essa circunstância o impede de se despedir dos correspondentes encargos de prestação pelo processo de transpassá-los a organizações sociais.”
O Fórum concorda com o “Parecer sobre a Terceirização e Parcerias na Saúde Pública”, do Subprocurador Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves[2], no qual se destacam os seguintes argumentos:
a) “[...] face ao disposto na Constituição (art. 196 e seguintes) e na Lei n.º 8.080/90, o Estado tem a obrigação de prestar diretamente os serviços públicos de saúde;
b) a iniciativa privada (com ou sem fins lucrativos) participa na prestação de tais serviços quando a capacidade instalada do Estado (prédios, equipamentos, corpo médico, instalações, etc.) for insuficiente para atender a demanda; [...]
f) não é possível, face às regras vigentes, aos Estados transferirem a gestão, a gerência e a execução de serviços públicos de saúde de hospitais ou unidades hospitalares do Estado para a iniciativa privada; [...]
j) as leis estaduais e municipais, que pretendem transferir à iniciativa privada a capacidade instalada do Estado em saúde, são ilegais e inconstitucionais;
k) a Lei n.º 9.637, de 15 de maio de 1998 (originária da MP nº 1.591/97), no que se refere à saúde, é inconstitucional e ilegal quando: dispensa licitação (§ 3º art. 11); autoriza a transferência para a iniciativa privada (com ou sem fins lucrativos) de hospitais e as unidades hospitalares públicas (ex.: art. 1º, quando fala em saúde; art. 18, quando fala em absorção e quando fala em transferência das obrigações previstas no art. 198 da CF e art. 7º da Lei nº 8080/90; e art. 22, quando fala em extinção e absorção); [...]
n) a terceirização da Saúde, seja na forma prevista na Lei nº 9.637/90, como nas formas similares executadas pelos Estados – e antes mencionadas – dá oportunidade a direcionamento em favor de determinadas organizações privadas, fraudes e malversação de verbas do SUS;
o) a terceirização elimina licitação para compra de material e cessão de prédios, concurso público para contratação de pessoal e outros controles próprios do regular funcionamento da coisa pública. E pela ausência de garantias na realização dos contratos ou convênios, antevêem-se inevitáveis prejuízos ao Erário Público.”
O Fórum também concorda com as afirmações da Drª Vera Monteiro, Prof. da PUC/SP Doutora em Direito Administrativo[3] ao analisar as OSSs criadas em São Paulo:
“as OS (Organizações Sociais) hoje são uma realidade em São Paulo. São entidades privadas que recebem repasses para prestar serviços na área da saúde. Temos um problema sério que é o Estado não estar habilitado a fazer contratos de gestão. Precisamos ter em mente que estes instrumentos que criamos, OS, Fundações, podem na verdade ser grandes fontes de desvio de recursos públicos. Qual o interesse de uma entidade privada fazer gestão de um serviço social público se não o interesse econômico?”
Assim, fica evidente que o arcabouço legal do SUS não admite a entrega de capacidade já instalada pelo Estado a terceiros como está posto na proposta das Organizações Sociais de Saúde (OSSs), das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e das Fundações Estatais de Direito Privado.
Considerando que as propostas de terceirização da Saúde - Organizações Sociais de Saúde (OSSs), das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e das Fundações Estatais de Direito Privado - foram rejeitadas pelas instâncias de Controle Social que têm caráter deliberativo:
As instâncias de Controle Social do SUS – as Conferências Nacionais de Saúde (8ª, 10ª, 11ª, 12ª e 13ª) e o Conselho Nacional de Saúde - já deliberaram contra as formas de terceirização da saúde e em defesa do modelo de gestão já consagrado na legislação do SUS: descentralizado, com comando único em cada esfera de governo e com pactuação da política entre as mesmas; com uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços, conforme a complexidade da atenção à saúde, sob comando único; com acesso universal e com integralidade da atenção à saúde; com financiamento tripartite; com controle social através da participação social através das Conferências e Conselhos que definem, acompanham e fiscalizam a política de saúde e a utilização de seus recursos.
O Conselho Nacional de Saúde, através da Deliberação nº 001 de 10 de março de 2005, posicionou-se “contrário à terceirização da gerência e da gestão de serviços e de pessoal do setor saúde, assim como, da administração gerenciada de ações e serviços, a exemplo das Organizações Sociais (OS), das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) ou outros mecanismos com objetivo idêntico, e ainda, a toda e qualquer iniciativa que atente contra os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Este Conselho também recusou a proposta de Fundação Estatal para o Sistema Único de Saúde, em sua 174ª Reunião, de 13 de junho de 2007.
O “Parecer sobre a Terceirização e Parcerias na Saúde Pública”, do Subprocurador Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves, expõe que a lei que cria as OSs, Lei nº 9.637/98, “colide frontalmente com a Lei nº 8080/90 e com a Lei nº 8.152, de 28 de dezembro de 1990. Desconhece, por completo, o Conselho Nacional e os Conselhos Estaduais, que têm força deliberativa”.
Diante do exposto, o Fórum Permanente contra as Fundações Estatais de Direito Privado e em Defesa do Serviço Público e dos Direitos Sociais aguarda o posicionamento deste Ministério, bem como as medidas cabíveis no sentido de impedir a referida implantação nas unidades de saúde do estado de Alagoas.
Atenciosamente,
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Fórum Permanente contra as Fundações Estatais de Direito Privado e em Defesa do Serviço Público e dos Direitos Sociais
[1] Maria Sylvia di Pietro é jurista, titular de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da USP. Esta afirmação encontra-se no livro: PIETRO, M. S. Z. di. Parcerias na Administração Pública. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2002.
[2] Parecer do Subprocurador Geral da República, Dr. Wagner Gonçalves, exarado em 27 de maio de 1998, registrando a inconstitucionalidade da terceirização da gestão na área da saúde.
[3] Professora e jurista - artigo publicado no Jornal do Brasil em 24/11/2007.
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