Tema tratado transversalmente em diversas mesas e paineis do Abrascão, a relação público-privado teve também mesa específica na programação. O debate O Público e o Privado no sistema de saúde brasileiro encheu o auditório do Salão de Atos da Reitoria da UFRGS, na tarde de domingo. A professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, Ligia Bahia, apresentou o panorama de expansão do mercado de planos de saúde no Brasil, que desde 2008 é o segundo maior do mundo — 49 milhões de pessoas, ou 26,3% da população, estão cobertas por 1.386 empresas (ver também matéria na pág. 28).
Vitória, cidade com maior nota no Índice de Desempenho do SUS, também é a cidade com maior cobertura de plano de saúde: 75,5%. “Os planos crescem muito mais do que a população”, comparou. E o preço desses planos aumenta mais do que a inflação. A expansão se concentra entre os planos mais baratos — “mas muito caros para a assistência que oferecem”, avaliou Ligia.
Para ela, o problema da relação público versus privado no Brasil é o fato de o país ter um sistema universal de saúde com estrutura de financiamento não universal. “A maior proporção dos gastos em saúde é do privado, e com tendência de elevação, enquanto o gasto do público não aumenta o suficiente para atingir a universalização de fato”. Em outras palavras, Ligia disse acreditar que essa estrutura de financiamento inviabiliza um sistema de saúde universal. “Até os Estados Unidos antes da reforma de saúde do Obama tinham maior proporção de gasto público do que o Brasil”.
O principal efeito, apontou, é a privatização do SUS — sustentada por políticas governamentais como isenção e dedução fiscal para a demanda e a oferta de planos; créditos e empréstimos para as empresas; auxílio na obtenção de empréstimos com bancos internacionais; associação de banco estatal com investidores que atuam no mercado de assistência suplementar; e gastos diretos com planos para servidores públicos. “São políticas de um governo que diz defender o SUS”, criticou.
Sistema estratificado
Ligia observou que o investimento governamental na rede de atenção primária reforça um modelo ineficaz e não efetivo — “curativo, fragmentado, biomédico, insensível à integralidade” —, que não compete com os planos de saúde. “Os hospitais de excelência hoje são os privados, em que nós nem sequer podemos entrar”, observou. Segundo a professora, não há um mix público-privado em saúde no Brasil, nem um sistema dual: “O que temos é um sistema estratificado, construindo cada vez mais submercados, com planos para as classes AAA, A, C...”.
O SUS, apontou Ligia, enfrenta muitos desafios políticos, ideológicos e teóricos: agenda internacional de universalismo básico, com redução do gasto direto; financiamento público para agentes privados; progresso social acompanhado de mudanças apenas embrionárias; questionamento sobre a eficácia da previdência social; triunfalismo, que leva a incrementar apenas os programas que estão dando certo; cultura institucional de secretarias para as quais há “população SUS” e “não SUS”; e falta de financiamento para pesquisar, “e não para somente avaliar positivamente um setor”.
Reforma da reforma
Professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, o sanitarista Gastão Wagner também identificou uma “ação do Estado brasileiro para desenvolver o mercado em geral, inclusive o mercado de atenção à saúde”. “E o que a gente faz com isso?”, perguntou. Em 1991, ele já analisava a relação do Estado com o privado em sua tese de doutorado. Sua conclusão: era preciso levar à frente uma “reforma da reforma”.
A “reforma da reforma”, explicou, significa inventar um novo público, com o dobro de financiamento para a saúde. “O investimento atual, de 3,5% do PIB, é muito baixo para um sistema que se pretende universal”, comentou, lembrando que os sistemas desse tipo têm aporte de cerca de 8% do PIB. Para ele, o desafio é enfrentar a crise ideológica do SUS — “dos gestores, mas que também está entre nós” — e convencer a sociedade a apoiar o sistema.
“Não podemos fortalecer o imaginário da maioria da população, que vê os planos de saúde como sonho de consumo”, disse. “Desde o século 19 há evidências de que a saúde tem que estar fora do mercado, e a criação do SUS se deu por isso”. Nas palavras de Gastão, a expansão do modelo da medicina de mercado — consumista, medicalizador, centrado no hospital — é inviável, assim como é inviável garantir saúde universal com um financiamento “que mais parece o eletrocardiograma de um morto”.
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